A Refúgios Urbanos e os painéis artísticos

Um um artigo para o portal Vitruvius, o arquiteto e urbanista Rafael Pinto Junior analisa a relevância da produção em azulejos do pintor Candido Portinari (1903-1962) para a arquitetura moderna. “A azulejaria, parte importante da visualidade da arquitetura modernista brasileira das décadas de 1930 e 1940, participou da realização da ambiência do espaço construído, concretizou as exigências psicológicas e artísticas dos ambientes e contribuiu para a singularização desta arquitetura.” Isso porque, segundo o autor, uma obra de arte pensada para um determinado projeto e em determinadas circunstâncias tem a capacidade de despertar nas pessoas a consciência acerca não apenas das características físicas como também da vocação social daquele espaço.

O célebre arquiteto Lúcio Costa (1902-1998), partindo do princípio de recuperar a ornamentação com raízes na arquitetura colonial, fez um uso consistente da azulejaria como elemento decorativo, inserindo-a na estética modernista de forma tão harmoniosa que o recurso é considerado por muitos especialistas o mais marcante da produção arquitetônica nos anos 1930 e 1940. “Enquanto elemento de revestimento, o azulejo era um material exclusivamente técnico e construtivo, com finalidades climáticas e de impermeabilidade; mas enquanto elemento simbólico, sua presença ultrapassava sua necessidade material”, continua Rafael Pinto Junior.

Os painéis artísticos que estandartes das artes plásticas brasileiras deixaram como marca de uma linguagem e uma identidade em construções modernistas emblemáticas nos dão uma dimensão concreta dessa importância. Além de Portinari – Igreja da Pampulha (Belo Horizonte) e Palácio Gustavo Capanema (Rio de Janeiro) –, os painéis também receberam a atenção de mestres como Athos Bulcão (1918-2008) – Palácio do Itamaraty (Brasília) e Igrejinha Nossa Senhora de Fátima (Brasília) –, e Burle Marx (1909-1994) – jardins do Instituto Moreira Salles (Rio do Janeiro) e da Fundação Oswaldo Cruz (Rio de Janeiro). E a lista poderia se estender muito além.

Preservação, memória e resgate
Com o florescer da arquitetura modernista em São Paulo, floresceram também os painéis artísticos em vários edifícios pensados para a cidade, sobretudo no período de 1940 a 1960. Por meio de várias iniciativas, a Refúgios Urbanos decidiu estimular a retomada dessa prática que tanto diz sobre a arquitetura brasileira.

Nos últimos dois anos, a imobiliária investiu na restauração e idealização de painéis que ajudam a contar a história de personalidades importantes de nossa cultura ou resgatam a memória e a grandiosidade edifícios emblemáticos. “Quisemos retomar uma tradição que perdurou no Brasil por décadas. Antigamente, não existia a possibilidade de se construir prédio sem considerar a instalação de uma obra artística no hall ou nas áreas comuns”, explica Matteo Gavazzi, fundador e sócio da Refúgios Urbanos. “As pessoas queriam estar cercadas de coisas belas, e os arquitetos, por sua vez, tinham em seu círculo de amigos artistas talentosos, capazes de assumir e resolver brilhantemente o desafio de pensar obras artísticas de forma a promover uma comunhão maior entre a área privativa dos apartamentos os espaços comuns dos edifícios.”

Exemplos na cidade não faltam. Basta recuperar a longa e produtiva parceria do arquiteto David Libeskind (1928-2014), autor do Conjunto Nacional (1955) e de vários edifícios residenciais em Higienópolis entre 1957 e 1963 – como Arper, Arabá, Pernambuco e Jardim Buenos Aires –, com o artista plástico Danilo Di Prete (1911-1985). Ou ainda, da colaboração do casal de italianos Ermanno Siffredi e Maria Bardelli, do escritório Siffredi & Bardelli, com o pintor e muralista Bramante Buffoni, que assina o painel de mosaicos instalado na entrada do Edifício Nobel (1958), de autoria Maria Bardelli. Outro nome importante nesse cenário de intercâmbio entre as artes e a arquitetura é Clóvis Graciano (1907-1988), eternizado na paisagem paulistana em painéis como o do Edifício das Nações Unidas, de Abelardo de Souza, e o Edifício Lausanne, de Franz Heep.

 

Empurra-empurra

A primeira inciativa da Refúgios Urbanos em torno de um painel foi dedicada à memória do escultor Victor Brecheret (1894-1955). Entregue em julho de 2016, é resultado de um financiamento coletivo organizado em parceria a loja de design Apartamento 61. O painel foi criado pelo Atelier Leopardi Esperante.

A obra foi instalada no imóvel no Jardim América que serviu de casa e ateliê para o artista. Construída na década de 1950 em estilo modernista, a residência foi reformada pelo escritório de Rino Levi em 1960. “O painel integrado ao imóvel onde Brecheret viveu foi inspirada em sua mais icônica criação, o Monumento às Bandeiras”, conta Matteo Gavazzi. Conhecida popularmente como “Empura-Empurra”, a obra foi inaugurado em 1953, em frente ao Parque Ibirapuera.

 

REDESCOBERTA E NOVO SIGNIFICADO
Coberto de tinta branca e por muitos anos esquecido – e escondido – no salão de festas de um prédio da década de 1950 em Higienópolis estava um painel de autoria de Sophia Tassinari (1927-2005).
Nascida em São Paulo, a artista plástica iniciou seus estudos com Theodoro Braga e foi aluna de Anita Malfatti, Mário de Andrade e Grupo Guanabara. Ao longo de sua carreira, participou de inúmeras exposições, entre individuais e coletivas, e salões de arte, tanto no Brasil quanto em países como França, Espanha, Itália e Estados Unidos. Além de ter sido moradora de Higienópolis, assim como vários artistas da época, Sophia também trabalhou como professora na Universidade Mackenzie, uma instituição do bairro.
A redescoberta dessa memória artística até então apagada deve-se à arquiteta e restauradora Renata Ferretti. Ao se mudar para o edifício, ela deu início a um movimento para recuperar a história da construção e fazer com que os moradores se apropriassem dos espaços comuns. “Trata-se de uma pintura regionalista, bem típica dos anos 1960”, explica.
Graças a uma parceria com a Refúgios Urbanos, o painel foi totalmente recuperado e entregue aos moradores em fevereiro de 2017. “Não conseguimos fazer todos os projetos que gostaríamos, mas com iniciativas como essa buscamos inspirar outras pessoas a se engajarem em uma cadeia de transformação”, diz Matteo. “Queremos que as pessoas se apropriem dos espaços e considerem como seus não só suas casas, mas também o prédio, a rua, o bairro.”
O processo de restauração durou um ano e foi inteiramente executado por Renata, que também é técnica em restauro de afrescos formada em Florença (Itália), segundo uma técnica que buscou reintegrar a pintura à construção. “Trabalhei de forma a reproduzir, através da técnica de pontilhismo, partes pequenas da pintura que haviam se perdido, de forma que as intervenções sejam perceptíveis”, explica. “Onde havia lacunas muito grandes, não foi mexido, apenas harmonizado com outro tom.” Hoje, quem frequenta o prédio pode ver de perto essa riqueza da arte brasileira restaurada com cuidado, respeito e esmero.

 

MÚSICA PARA OS OLHOS
Era uma vez um predinho de três andares em Higienópolis. Ninguém sabia ao certo sua história. Até que um dia, a planta original foi descoberta por um dos moradores. Para a surpresa de todos, descobriu-se que a primeira proprietária do imóvel havia sido a ilustre pianista Guiomar Novaes (1894-1979).
Nascida no interior paulista, em São João da Boa Vista, Guiomar tornou-se especialmente conhecida por suas interpretações de obras de Frédéric Chopin e Robert Schumann. Construiu uma sólida carreira internacional, especialmente nos Estados Unidos e teve um papel importante na divulgação das composições de Heitor Villa-Lobos no exterior.
Ao descobrir essa incrível história, a Refúgios Urbanos deu início ao projeto de eternizá-la na memória do edifício, dos moradores, visitantes e da cidade. A vontade se materializou em agosto de 2017, com a entrega de um painel de azulejos com desenhos de… piano (claro), idealizado pelo Atelier Leopardi Esperante e instalado pela AnimaCasa, parceiros da imobiliária.
“O prédio pertenceu a Guiomar e apenas um antigo morador que estava de mudança tinha dessa informação”, conta o fundador da empresa. “Ao fazermos essa descoberta, nos sentimos na obrigação de preservar essa memória, deixando esse marco para todos e para sempre.”

Passado glorioso

O mais recente painel idealizado pela Refúgios Urbanos foi um presente ao Palacete Gonzaga, inaugurado em 1927 na Rua Benjamin Constant, na Praça da Sé. Instalado no fim de agosto de 2017, é resultado de uma nova colaboração com o Atelier Lopardi Esperante.

O projeto começou em 2016, com o propósito de realizar um painel artístico nos moldes do período modernista, especialmente pensado para um edifício histórico que foi um dos primeiros arranha-céus de São Paulo. Executado em ladrilho hidráulico pelo ateliê, teve como inspiração os grafismos do piso original hall do Gonzaga.

Nos anos 1980, o Palacete Gonzaga passou por uma reforma que descaracterizou sua arquitetura. Agora, uma nova revitalização tenta recuperar parte dos elementos originais do projeto. “O hall precisava recuperar sua antiga beleza, e nada mais apropriado que um painel bem pensado para completar a projeto de reforma que vai mesclar de forma sutil e respeitosa o antigo com o novo”, diz Matteo.

“Esse trabalho tem um significado especial para nós. Apesar de não ter o objetivo de resgatar elementos originais da construção, ele insere na área comum uma obra de arte que imediatamente se torna um ponto de destaque no Palacete Gonzaga”, finaliza o fundador da Refúgios Urbanos.

Ao longo processo, outro patrocinador se juntou à Refúgios Urbanos na empreitada, a sociedade de advogados Deneszczuk Antônio Sociedade de Advogados, um dos escritórios que funcionam no Palacete Gonzaga. O projeto contou também com o importante apoio do arquiteto André Amorim, responsável pela obra no edifício, e a Predial Ruggiero, que administra o condomínio.

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