Carta – Conjunto Nacional

Prédio não é imóvel.

Obrigada “Dom” Matteo.
Eu sempre quis dizer isso. E agora posso escrever e acrescentar: o Conjunto Nacional não é um prédio.
E aqui vai um (pensamento de gratidão) ao José Tjurs e ao David Libeskind que o batizaram.
Ele poderia se chamar “Edifícios do Conjunto Nacional”, “Conjunto Predial Nacional” ou com alguma pedante tonalidade moderna: ”Complexo Edilício Nacional“. Quem sabe quantos nomes pernósticos lhe caberiam.
Mas é só e tão simplesmente o “Conjunto Nacional”.
Nunca teve uma placa, um nome estampado na sua fachada, nunca foi poluição visual na Avenida Paulista, assim chamada “por ser de todos os Paulistas” segundo Joaquim E. De Lima.
David Libeskind, com seus doces olhos azuis me contou que Tjurs lhe disse o que queria construir naquele retângulo vazio desenhado num papel “de pão”, como se dizia nos anos 50, que lhe entregou quando era recém-formado e tinha 25 anos: Transformar a Avenida Paulista na “5º Avenida de Nova York”.
O Conjunto já nascia da ousadia do hoteleiro “argentino – brasileiro” Tjurs e do jovem recém-chegado de Ouro Preto que morava em uma pensão.
Davi trouxe para o branco daquele papel a memória de uma única construção ocupando todo o terreno lembrando a imponência da casa construída por Victor Dubugras para o comerciante rico e nada aristocrata Horácio Sabino.
Fazia uma galeria comercial unindo os que seriam “4 cantos, com cinema, teatro, um grande mercado, duas lajes com lojas sobre o térreo “ 1º shopping Center da América Latina”.
Todo o jardim da antiga casa seria levado para cobrir a parte comercial como um grande parque público onde se poderia passear às tardes com as crianças e ver São Paulo lá em baixo por todos os lados.
Pilares robustos plantariam essas torres que “flutuavam” sobre o imenso terraço numa unidade imponente e de linhas simples.
Eu sempre achei que lembra um pouco da sede da ONU em Nova York.
A partir do subsolo a unidade se faria por uma espiral de concreto numa rampa helicoidal suspensa concluída por uma imensa cúpula geodésica, que como tudo nos anos 50, teria que ser a primeira e maior da América Latina.
E tudo isso seria apenas um Conjunto Nacional, cheio do ufanismo que acompanhava a construção de Brasília.
De volta a você, nesse caso “Dom Matteo”, tento falar com meu coração sobre o Conjunto Nacional, como me pediu.
Tudo o que digo sobre essa história pode ter as inúmeras incorreções técnicas e outras das quais já peço desculpas aos arquitetos, urbanistas e aos descendentes do José Tjurs e do David Libeskind.
Mas, não quero falar do “Complexo imobiliário” que não é o Conjunto Nacional, mas aqui da paz da minha Cordeirópolis, no final de feriado de 21 de abril ouvindo Beethoven, te falar do que é o Conjunto Nacional para mim que vivo nele pelos meus 31 anos passados.
Só meu coração me faz companhia ao fazer renascer, sob os movimentos um pouco trêmulos de minha mão com lápis e borracha sobre o papel (não consegui fazê-lo no computador) algumas imagens e lembranças.
Era setembro de 1984. Começamos pelo subsolo onde o Sr. Olivieri Carnevalle fez minha iniciação nos labirintos do “Conjunto”. Havia os restos do antigo “incinerador” e ele me levou para as “catacumbas”, um terceiro subsolo que abriga um sistema de arejamento das garagens, alimentado por um exaustor que parece uma “usina” (funciona até hoje).
Tudo era triste, sujo, abandonado, e cada vez mais o coração do Carnevalle me levava aos infernos. Foi ele que me trouxe o Engenheiro Fausto Favalle que continuou comigo o passeio pelos recantos ainda mais escondidos: uma parte das duas garagens engolidas pela Prefeitura para o que teria sido o melhor futuro da Avenida Paulista: o projeto Figueiredo Ferraz, sepultado pela ditadura. Ah!  As casas de bombas, as cabines de força, as casas de máquina dos elevadores e suas sombras, seus silêncios e sua fragilidade para alimentar o gigante cheio ainda das feridas do incêndio de 1978.
Depois chegou Noir meu outro anjo da guarda. Sim, José de Souza: meu anjo da guarda sim, um bombeiro se fazia necessário, pois havia ainda muito a fazer para se obter o almejado AVS (não me deterei a explicar essas criações kafkianas que assombram todos os prédios), depois do incêndio de 1978.
Noir era meus olhos, meus ouvidos e levava o meu coração com o cuidado de quem já me conhecia dos tempos dos subterrâneos de prédios queridos do centro velho: o Edifício Independência, o Edifício Olido e o Edifício Savoy na Paulista 810.
Noir me apresentou aos “Mocós”, aos esconderijos, às moradas clandestinas ao avesso do avesso. Noir tinha “passe livre”, pois todas as portas se abriam para ele que era o portador da “segurança”.
Assim sob as asas dos meus anjos pioneiros fui me apropriando do “Conjunto” em suas entranhas.
Aos poucos, esse “exército Brancaleone” foi subindo ao térreo, terraço, portarias, corredores, escadas até a laje da cobertura onde fica a belíssima estrutura do nosso relógio que mede a temperatura (isso é uma outra história … que fica para uma outra vez…).
Em 1986 obtivemos nosso AVS.
Já não sei mais quando Carnevalle e Noir foram para o “andar de cima” deixando para nós os segredos que são comuns a todos os prédios em maior ou menor proporção.
Fausto foi o Virgílio da nossa aventura “dantesca” até 2014. Todas as quintas-feiras dirigindo as “reuniões técnicas”, onde como mestre, cuidou de todas as intervenções do Conjunto. Das menores em escritórios de 40 m² do edifício Horsa I (Ah! Me esqueci: Horsa = “Hotéis Reunidos S.A. Nome, inusitado também) até a reforma total de infraestrutura elétrica que duplicou os originais 4500 KWA e que foi concluída em 2012; e as reformas dos apartamentos no edifício Guayupiá (nome indígena também de origem desconhecida). Fausto Amadeu Favalle a tudo acompanhou, decifrando os enormes lençóis de plantas do nosso precioso arquivo, analisando cada detalhe dos projetos apresentados pelos profissionais das mais diversas especialidades.
Mestre de todos nós, deixou sua cadeira vazia à cabeceira da mesa de reuniões onde esteve até uma semana antes de morrer no final de 2014.
Ainda restam outro que lá no céu que abriram meus caminhos nos subterrâneos.
Maria Clemência, a que não tinha sobrenome até ficar Andrade depois de casada. Anjo negro que me desvendou os infernos da “turma da limpeza”, aquele que, em todos os prédios, mais fica escondida. Inesquecível Maria que vi vestida com saco de lixo preto cortado nas mangas carregando um carrinho, não tão pequeno, com dezenas de sacos de plásticos pelos corredores da galeria num dia em que a greve dos ônibus não deixou que seus “meninos e meninas” chegassem ao Conjunto.
Maria que me disse dos ferimentos que vidros quebrados e “perfuro cortantes” faziam nos seus “meninos e meninas” pelos descuidos de todos nós, os usuários, habitantes e condôminos de um prédio.
Em 1990 mais um anjo se somou à Maria, Antônio Carlos de Carvalho. O criador de nossa “Coleta Seletiva”. A esse tempo não era “chic” e “moderno” se falar nesse assunto. Mas recolher 5 a 6 toneladas de lixo por dia, sem que os elevadores das torres chegassem (como até hoje não chegam) ao subsolo, sem que nenhum caminhão coletor se “dignasse” a descer ao subterrâneo para fazer a coleta eram desafios a que Maria acrescentava as mazelas do pessoal da limpeza.
Em 1992 a Coleta Seletiva foi oficializada em Ata de assembleia.
Maria se foi levando seu filho também ainda não nascido em 1990.
Antônio Carlos meu amigo querido se foi naqueles tristes tempos em que não havia “coquetéis salvadores”.
A esses queridos minha memória pode acrescentar o Antônio encanador o Martin de Carvalho, o Agnaldo Felix e o Alessandro Corazza, o Milton, que tirava férias para assistir a todos os filmes da Mostra Internacional de Cinema, o Leogevildo Moreira que estava aqui antes da minha chegada e que nunca quis deixar de ser porteiro do Horsa II. São os que se foram e deixaram o andar térreo.
Em 1990 renovamos o contrato com o banco Itaú para a manutenção do relógio da laje superior.
Começamos o que hoje se chama “retrofit”, pela marquise externa, sua recuperação estrutural, impermeabilização, solução para águas pluviais e a iluminação que finalmente nos permitiu assumir o espaço privativo das calçadas, antes terra de ninguém.
Então chegaram os novos companheiros: Aurélio Longo que acompanha toda essa evolução desde quando criou o tema da nossa logo marca em 1985. João Paulo Miguel e sua equipe de profissionais incorporam os saberes dos mais antigos colaboradores do Conjunto: José Cardoso Sobrinho, quem até hoje desvenda todos os mistérios das redes elétricas, hidráulicas de todos os registros, depósitos e entranhas ainda desconhecidas por nós.
E assim, caro “Dom Matteo” deixo um pouco de história de anos, que centenas de pessoas que passaram pela vida do Conjunto Nacional. Que não é um prédio.
Quis falar do que fica mais oculto do que fica no silencio dos subsolos, dos corredores, da segurança, da beleza do Conjunto Nacional.
Desculpem-me sinceramente os que não mencionei. Seriam centenas.
Em 2005 o Conjunto Nacional foi tombado pelo patrimônio histórico “CONDEPHAAT” e agora nesses dias pela CONPRESP.
Peço apenas que o coração dos técnicos que trabalham para manter a história da arquitetura, do urbanismo, nunca se esqueça que os prédios foram construídos para abrigar gente. E que como gente também são organismos vivos, que pulsam, adoecem, se ferem, se recuperam sempre através de gente que os cuida para toda a gente que neles vivem até sempre.
Um abraço
Vilma Peramezza

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