Descrição
A palavra “vintage“, utilizada para caracterizar uma casa com tamanha complexidade, pode parecer uma classificação vulgar, mas só parece, isso porque a palavra teve seu significado modificado ao longo do tempo; hoje é utilizada fazendo referência a estética dos anos 50-60, porém seu significado original é relacionado a produção de vinhos: “vintage” é a classificação dada a melhor safra de uma vinícola, esse é o motivo da caracterização. Na casa que construiu para si em 1961, o arquiteto David Libeskind sintetiza todos os aspectos mais relevantes presentes em seus projetos residenciais.
É interessante imaginar as circunstâncias que envolveram a elaboração do projeto, em uma fase que Libeskind havia ganhado muita projeção como arquiteto, principalmente após a construção do Conjunto Nacional, e que acabara de se casar, o grande apoio do sogro, que o adotou como um filho e deu generosas contribuições para a construção da casa, foi o fator que permitiu ao arquiteto desenvolver todas as soluções projetuais que havia idealizado e empregar os materiais mais nobres encontrados na época.
A solução adotada para vencer o grande declive do terreno foi desenvolver o projeto em vários níveis, definindo os setores da casa através de eixos verticais e horizontais, onde cada fachada tem uma solução plástica diferente e cada pavimento uma função estabelecida.
A atenção aos detalhes começa desde a entrada, através de um portão, construído com barras de ferro, que parecem alinhadas lateralmente, mas que, na verdade, são alternadas diagonalmente, a garagem é um espaço pavimentado com lajotas cerâmicas e coberto por uma laje plana, revestida com madeira e sustentada por duas grandes vigas metálicas pintadas de cinza. Estas ultrapassam os limites da cobertura até atingir o muro lateral, abaixo delas há um pátio, localizado entre dois jardins suspensos.
Ao passar pela porta, ornamentada com pirâmides de madeira, chega-se ao o hall, onde três elementos nos chamam atenção: o primeiro deles é a escada, ladeada pelo guarda corpo com desenho curvo e suave, construído com ripas de madeira; o segundo é a treliça, também de madeira, sustentada por hastes de latão dourado; e o terceiro elemento é a porta da sala de jantar, com motivos que remetem a “op art”.
Detalhes esses, projetados inteiramente pelo Libeskind, que se servia de ótimos artesãos e profissionais de serralheira e carpintaria para transformar em realidade seus minuciosos desenhos.
Essa qualidade nos faz comparar o arquiteto com seu ilustre colega americano Frank Lloyd Wright, que também desenhava todos os pormenores de seus projetos residenciais.
Atrás a “porta cinética” está a sala de jantar, localizada em um pavimento intermediário em relação ao living e ao escritório, integra-se virtualmente a ambos, o pé direito alto permitiu a instalação de um grande pano de vidro, garantindo a vista da paisagem do Pacaembú.
Nesse pavimento ainda estão o lavabo, a sala de almoço e a cozinha, cada um com sua peculiaridade: o lavabo apresenta muitos elementos de madeira, uma característica incomum para época, as paredes são revestidas com folhas de madeira e as lâmpadas são embutidas no forro, escondidas por vidros jateados, sustentados por ripas de madeira.
A sala de almoço apresenta uma das paredes revestidas por folhas de madeira, que dissimula a presença da porta, do mesmo material. Existe uma comunicação com a cozinha, através de uma janela do tipo guilhotina, de vidro jateado, material que garante o isolamento do dois ambientes quando fechada, solução idêntica é escolhida para porta de ligação entre os espaços.
A cozinha encontra-se voltada para a entrada da casa e por isso foram instaladas janelas junto ao teto, com a intenção de impedir a visão interior-exterior, porém com grande apelo estético, pois elas se alinham com as vigas metálicas da garagem. As janelas, com a função de iluminar e ventilar, são instaladas na parede lateral, voltada para o pátio de serviço. Há de se destacar a escolha do revestimento fórmico, tanto para as paredes quanto para os armários, tornando a cozinha um ambiente monocromático.
Subindo um lance de escada, chega-se a uma ante sala, com acesso ao jardim, aos quartos e ao escritório. Vamos começar pelo escritório, instalado sobre o living e que, apesar de ser configurado com um mezanino, apresenta divisórias, como as treliças e a porta de madeira ripada, garantindo a privacidade do espaço sem isolá-lo completamente. Dá para imaginar que a porta, quando fechada, era um aviso para não incomodar, pois o Libeskind deveria estar concentrado em algum projeto.
Em frente a escada há uma grande porta de madeira, ornada com troncos de pirâmide e contornada por vidros bisotados, com o mesmo desenho, ela enfatiza a divisão da área íntima. O corredor que dá acesso aos quartos é revestido por folhas de madeira, a escolha do material se relaciona com o uso do espaço, dando a sensação de aconchego.
Os quartos apresentam dois aspectos interessantes: os armários com portas de madeira ripada e as janelas do piso ao teto, cujas folhas são escondidas em painéis revestidos com placas cerâmicas, instalados externamente.
Os banheiros também apresentam características especiais, como as grandes janelas em fita, posicionadas junto ao teto, os espelhos instalados diretamente nas placas de acrílico, e as placas de mármore, em tons de laranja e marrom, que revestem o banheiro do casal.
Meio nível abaixo do hall, está o living, com suas paredes revestidas com pedras, piso de tábuas corridas, forro de madeira e as grandes portas de portas de vidro, que vão do chão ao teto, entre as quais foram instalados brises móveis, que regulam a entrada do vento quando as portas estão fechadas. O espaço do living apresenta diferentes elementos como a lareira e o bar. A lareira, revestidas com placas de cerâmica vitrificada, localiza-se no meio da casa e abaixo da escada, uma posição que dificulta a instalação de uma chaminé, desafio que o arquiteto superou através de sucção lateral. O bar é constituído por uma bancada em balanço, armários com treliças nas portas e nichos iluminados, destinado a receber obras de arte. Além disso também oculta o espaço de uma bancada com cuba e o acesso à adega.
Saindo do living, há um terraço formado entre os pilares revestidos de mármore e que sustentam o bloco dos dormitórios. Clara, aqui, a referencia com o “Pavilhão de Barcelona” realizado em 1929 por Ludwig Mies van der Rohe, em ocasião da “Exposição Internacional”.
A presença de uma churrasqueira indica que este era um lugar ideal para festas, principalmente por estar localizado ao lado da piscina, cujo desenho constitui a única linha diagonal presente projeto.
No terraço ainda, é imprescindível mencionar a presença do guarda corpo revestido com azulejos estampados com figuras geométricas e a escada de acesso ao piso inferior, com destaque para a floreira e a luminária circular, presente na parede central.
No pavimento inferior encontra-se o ateliê, que apesar das paredes brancas e dos panos de vidro apresenta monocromia em azul claro: através de uma escotilha, afixada na parede lateral da piscina, emana uma constante luz azulada, que se acentua com o piso de ladrilhos azuis. As luminárias ainda são as originais, desenhadas a fim de garantir iluminação difusa ao ambiente, ideal para os trabalhos de pintura desenvolvidos pelo arquiteto.
Nesse pavimento também há um estúdio fotográfico e uma espécie de praça, segundo Marcelo Libeskind, ele e o irmão Cláudio jogavam bola nesse espaço, local esse que registrou uma das únicas modificações ao longo dos anos, o jardim foi pavimentado, porém mantendo a unidade do projeto, tanto que as pedras utilizadas são as mesmas utilizadas para revestir o banco ao redor da árvore.
O outro espaço modificado foi o jardim, que se tem acesso a partir da ante sala em frente ao escritório, dele foram retirados o grande viveiro de pássaros e o chafariz, este construído em acrílico azul, a mesma cor das placas que revestem a parede oposta.
O último espaço a descrever é o setor de serviços, localizado à esquerda da casa, em relação a fachada, e um nível abaixo da entrada. Voltados para um pátio pavimentado com caquinhos cerâmicos em verde a branco, estão a lavanderia, os dormitórios e banheiros de empregados.
Mesmo nesse setor, considerado “menos nobre”, a atenção aos detalhes não foi abandonada, seja nos dormitórios e na lavanderia, onde foram instaladas grandes portas e painéis de vidro ou nos espaços abaixo da escada, destinados ao armazenamento de produtos e utensílios de limpeza.
Por último, mas não menos importante, é interessante ressaltar como a paleta de cores evidencia os diferentes eixos da casa. No jardim lateral se destacam o azul dos painéis de acrílico (utilizados em muitos de seus projetos para edifícios residenciais em Higienópolis), em contraste com o cinza das pedras, na entrada temos predominância dos tons terrosos e do cinza, já nos serviços o verde claro e o branco que harmonizam com a cor do céu…
Detalhes e mais detalhes, referências e mais referências, que somados fazem dessa casa a grande obra prima de David Libeskind.
Partindo a premissa, no início do texto, agora fica fácil entender porque, se fosse um vinho, com certeza seria um vintage, pois aqui estão condensadas as melhores “safras” do trabalho de David Libeskind.
E como todo bom vinho, o pêndulo do tempo não a faz envelhecer ou depreciar, muito pelo contrário: legitima-a cada dia mais como marco atemporal da Arquitetura Brasileira.
A prova de tamanha “perfeição” é que Libeskind nunca abandonou sua residência, onde morou e se inspirou desde 1961 até o final de sua vida, em 2014, aos 85 anos.
Texto: Felipe Grifoni
Fotos: Emiliano Hagge