Descrição
O projeto “Casas de São Paulo” surgiu a partir do desejo de resgatar a memória de residências “importantes”, projetadas por arquitetos ou não, mas que tenham valor histórico ou afetivo.
A ideia é contar a história delas e falar um pouco sobre a Arquitetura, o intuito é aproximar as pessoas deste patrimônio para que elas se sintam mais “obrigadas” a protegê-lo.
A identidade de um povo está no seu passado, se continuarmos demolindo todas nossas “antiguidades” em breve ficaremos sem identidade.
Escolhemos para ser a primeira da série, a Residência Costa Netto, projetada em 1958 por Joaquim Guedes, que apresenta referências das obras de Le Corbusier e Mies van der Rohe, e nunca mais foi publicada desde 1968.
A história dela foi contada pela Marta e pelo Ricardo, atuais proprietários, que em 2010 compraram a casa da família Costa Netto.
Mas vamos a casa, a história começa em 1958, ano em que a família Costa Netto, procura o arquiteto Joaquim Guedes para fazer o projeto de sua nova casa, três anos depois a obra é concluída e, em 1968, o projeto é publicado pela revista Acrópole, em uma edição especial apresentando seis projetos residenciais do mesmo arquiteto, esta foi a primeira e única vez que a casa foi publicada, após isso não há mais nenhuma publicação ou texto sobre ela, apenas algumas menções, em livros, revistas ou artigos acadêmicos.
Até que em 2010 a história recomeça, quando os atuais proprietários, em busca de um novo lar, foram conhecer a casa construída no lote vizinho e, nessa visita, ao olhar pela janela, encontraram aquela que seria sua nova morada. Para sua surpresa esta também estava a venda.
O casal quis então conhecê-la e descobriram surpresos que ela estava original, não havia sido reformada desde a construção e quem morava nela era a viúva do Dr. Costa Netto.
Eles então decidiram comprá-la e fazer uma reforma, mas tinham o desejo preservar ao máximo suas características e, com essa intenção, procuraram o escritório do arquiteto que havia feito o projeto, Joaquim Guedes já havia falecido, mas seu filho, Francisco Guedes, também arquiteto, se encarregou da empreitada.
A construção se divide em três níveis, com funções bem estabelecidas e interligados por elegantes escadas de concreto: ocupando a posição central, ao nível da rua, estão a entrada e o escritório, no pavimento inferior estão a cozinha, a área de serviço e as salas, que dão acesso ao jardim, projeto de Liliana Guedes, esposa do arquiteto, e no nível superior estão os quartos e o terraço, elemento “obrigatório devido a orientação”, palavras do arquiteto, ao se referir a orientação solar, publicadas na revista da Acrópole.
A casa de concreto e vidro, exigiu de Joaquim Guedes alguns cuidados para que ela não se tornasse uma estufa, além da atenção dada a insolação, o arquiteto também teve a preocupação de permitir ventilação cruzada, através de painéis de madeira, instalados alternadamente entre os pilaretes, que quando abertos permitem a livre circulação do ar, garantindo assim o conforto térmico.
A reforma trouxe algumas alterações na configuração da casa, que, afortunadamente, não descaracterizaram o projeto.
Uma das mudanças foi posição da porta de entrada, que originalmente estava voltada para a rua.
Nesta configuração o olhar de quem chegava era direcionado para um painel de concreto com iluminação embutida, destinado a exposição de alguma obra de arte, já com a modificação para a lateral, o visitante observa primeiro o jardim e o bairro para depois entrar na casa.
Outra alteração no projeto foi na área de serviço, onde a copa e a cozinha foram integradas criando um espaço de convivência para os moradores, unindo a sala de televisão com a cozinha e ligando as salas por meio de um painel deslizante (este foi revestido com folha de Pau-ferro, mesma espécie encontrada no jardim).
O sistema estrutural se baseia na utilização de quatro pilares, deslocados das extremidades, característica semelhante a de Mies van der Rohe na construção da Casa Farnsworth, nos dois sentidos: tanto como solução estrutural, que consegue vencer vãos maiores e criar balanços, quanto solução poética, que privilegia a vista do bairro, a partir do terraço.
Os pilares sustentam as lajes e as vigas, uma delas serve de peitoril para o terraço.
A cobertura inclinada remete a da capela de Ronchamp, projetada em 1950 por Le Corbusier; este é o elemento de destaque quando chega-se a casa: o olhar é direcionado para cima, para a copa das árvores, de onde surge uma estrutura ascendente, cujo pano de fundo é o céu.
Apesar de todas as imprecisões do conceito de Brutalismo, a casa pode ser considerada uma obra brutalista, ética e esteticamente, seja pela sua estrutura auto-explicativa, seja pelos seus elementos que revelam a “verdade dos materiais” ou ainda, pela ausência do acessório, não existem batentes ou esquadrias, as portas são instaladas diretamente nas guarnições e as os vidros das salas são colados em pilaretes de concreto.
O caráter experimental de algumas dessas soluções trouxe alguns conflitos entre a família e o arquiteto.
Como os vidros, com mais de quatro metros de comprimento, que se partiam com a dilatação do concreto e a acomodação do terreno.
Solução essa que gerou não poucos problemas, em especial alguns sustos no meio da noite, com os vidros estilhaçados, dano este, causado pela ineficácia deste tipo de instalação.
Os mesmos eram importados da Bélgica e o Dr. Costa Netto, para sanar o problema, decide instalar cintas metálicas entre os pilaretes.
Mesmo sendo uma obra isenta de acessórios, os detalhes não foram esquecidos, a mão do arquiteto se mostra presente, exemplos não faltam:
Os banheiros da área íntima, são iluminados por tetos de vidro, a escada de acesso aos dormitórios é ladeada por um corrimão de concreto livre de apoios e abaixo dela foi criado um banco do mesmo material.
Na parte externa, existem dois receptáculos para águas pluviais, também executados em concreto, e o piso do terraço é revestido por ladrilhos hidráulicos, em azul e branco, fazendo referência a nossa Arquitetura Colonial.
Em 2013 o programa Casa Brasileira faz um episódio dedicado a obra de Joaquim Guedes e a Residência Costa Netto é redescoberta, 45 anos depois de sua única publicação.
O reconhecimento maior só veio esse ano (2015), quando o projeto foi exposto no MoMa, em uma mostra sobre Arquitetura Latino Americana.
A real importância da casa não está no fato de ela ter sido publicada ou reconhecida por meios especializados, e sim no fato de ela ser atemporal, suas características permitiram que ela atendesse tanto a família Costa Netto, desde os anos 60, quanto seus novos moradores nos anos 2000, e é este fator que atesta sua qualidade arquitetônica.
A pureza de uma casa Brutalista, transforma-a em uma tela em branco para os devaneios dos teóricos da Arquitetura, tentando traduzir seu significado.
Conhecendo a casa e ouvindo o relato de seus moradores aprendi que a Arquitetura não pode ser entendida nem explicada: se a casa tivesse sido projetada pós 1964, ano do golpe militar, algum crítico de Arquitetura poderia ter comparado o escritório, o coração da casa, com a figura controladora do Estado, fazendo uma analogia a posição de poder exercida pela figura do patriarca em relação a família, o que seria no mínimo incoerente, considerando a generosidade do arquiteto que a projetou, certamente o espaço, aberto e central, foi pensado para que o Dr. Costa Netto pudesse ver os filhos brincando no jardim e, vice-versa, os filhos pudessem vê-lo trabalhando.
O verdadeiro significado de uma casa vem de seus moradores, a partir de suas vivências, o que vale são as tardes no jardim, os jantares em família, os momentos de leitura no escritório ou os dias frios junto a lareira…
Essa casa me ensinou que o significado da Arquitetura está nas sensações que ela desperta.
Texto: Felipe Grifoni
Imagens : Emiliano Hagge